Comunidade de

SANT'EGIDIO

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14/10/2002
INTERVEN��O DE DON MATTEO ZUPPI,
DA COMUNIDADE DE SANT�EGIDIO,
NO SIMP�SIO DA IGREJA CAT�LICA 
Maputo, 1 de Outubro 2002

4 de outubro 1992. Domingo. Verdadeiramente a paz � ressurrei��o. A guerra � morte. A paz � vida. Festa de S�o Francisco, homem de paz. A paz � o fim de um pesadelo. � um nascimento. Por isso a celebramos. Festa de ac��o de gra�as �quele cujo nome � Paz. Dez anos! Festa de mem�ria, sentida pelo sofrimento que atingiu a muitos e que n�o esquecemos; festa pensosa, pelo mal que assinala a vida dos homens. Festa de escolha para o futuro, porque a paz n�o se conserva, se constroe e se escolhe. Esta Festa � uma responsabilidade, por quantos, infelizemente, sonharam a paz, a imploraram e n�o a puderam ver. A todas as v�timas deve ir o nosso primeiro pensamento.

O acordo representa um conhecimento importante: a paz � poss�vel. E em todo o lado. N�s assistimos nestas semanas a tenta��o de recurso � guerra para resolver as tens�es. N�o. Di�logo n�o � fraqueza ou fazer pacto com o mal! � a �nica via para por verdadeiramente fim � viol�ncia para n�o aceitar que cres�am as inifinitas sementes de divis�o ou se alimentam as intermin�veis cadeias de viol�ncia e de vingan�a. Para n�s de Sant�Egidio a media��o mo�ambicana foi a prova da for�a d�bil dos crentes e dos homens de boa vontade, fruto do facto de n�o se ter outro interesse sen�o o da paz, o do di�logo, o da felicidade dos homens. � uma forca que n�o pode impor e que deve fazer as contas com os enormes interresses e as raz�es da guerra. Para os crentes esta for�a vem do imperativo evang�lico de n�o ter inimigos. Do sonho de Deus que recolhe as l�grimas dos homens e n�o deixa de esperar que as espadas se possam transformar em foices, desarmando as m�os e os cora��es dos homens. For�a que une os que cr�em no valor insubstitu�vel da vida humana. A f� doa a sabedoria de procurar o bem , de encontra-lo tamb�m no profundo dos homens envolvidos na guerra. Esta sabedoria do bem une no profundo quem procura a paz e cria uma sinergia. � como um tecido cujas linhas s�o mem�ria, gratuita, aten��o, amor pela hist�ria, fidelidade, paci�ncia. � o tecido do Acordo de Sant�Egidio.

Um segredo do acordo � mesmo a sinergia, poderemos dizer a complementariedade. Devemos reflectir como, pelo contr�rio, se perdem oportunidades de paz mesmo por uma l�gica personalistica de paises e organiza��es. O acordo de Roma � um dos poucos assinados e respeitados, sem revis�es. A media��o (governo italiano, Comunidade de Sant�Egidio e dom Jaime Gon�alves) era variada na sua composi��o, com actores n�o em concorr�ncia ou com l�gicas paralelas, mas unidos numa saud�vel e eficaz complementariedade. Pela Cominudade de Sant�Egidio n�o foi f�cil criar esta sinergia; orientar o apoio de toda a comunidade internacional: a sinergia precisa de humildade e paci�ncia. 

As partes apressaram-se desde o in�cio a reconhecer-se part�cipes de �uma mesma fam�lia�, encontrando, assim, mesmo no nacionalismo um denominador comum importante, um alfabeto para escrever as regras da futura conviv�ncia pac�fica. As negocia��es de Roma foram um verdadeiro di�logo africano mesmo se distante da �frica! Claro: sem o trabalho da media��o este di�logo n�o teria sido poss�vel, mas o nosso esfor�o foi o de compreender as raz�es profundas e a mentalidade das partes; procurar o que unia e facilitava a procura das solu��es. 

Porqu� em Roma? Em Mo�ambique existia uma indubit�vel presen�a italiana sobretudo no �mbito da coopera��o. Politicos de diversas proveni�ncias tinham sempre seguido com interesse Mo�ambique, ajudando, por exemplo a escolha de Maputo para uma ades�o pragm�tica ao Ocidente sem ropturas dolorosas e dificeis. Estes elementos apesar de serem importantes, n�o teriam sido suficientes para motivar a escolha de Roma. Pelo contr�rio: poderiam desencadear na Renamo a suspeita para com um pa�s advertido como neutro, como grande parte da comunidade internacional. A escolha de Roma deriva do intenso e continuo trabalho de rela��es e de confian�a desenvolvido pela Comunidade de Sant�Egidio, primeiramente com a FRELIMO (na d�cada de 80 atrav�s de m�ltiplas iniciativas de solidariedade � assim como os dois navios com milhares de toneladas de ajudas para as v�timas da seca - e de valoriza��o do Pa�s tais como a investiga��o hist�rica para doar aos Arquivos mo�ambicanos as fontes existentes nas congrega��es religiosas ou as exposi��es em It�lia para dar a conhecer a arte do Pa�s e n�o apenas os seus problemas) e seguidamente com a RENAMO. A Comunidade trabalhou em estreita colabora��o com as igrejas, apoiando e recolhendo o trabalho feito por estas para come�ar o di�logo. Como n�o recordar as cartas pastorais que insistentemente indicaram o di�logo, palavra que ainda era considerada perigosa, como �nica via para por fim a viol�ncia. Os Livros Brancos que procuravam fazer conhecer os efeitos tr�gicos da guerra. Estes esfor�os conduziram em 1989 em Nairobi as delega��es do Governo e da Renamo, pr�ximas de um primeiro encontro directo. Este esfor�o, apoiado pela Comunidade de Sant�Egidio - que tinha sido a primeira a identificar e a estabelecer o contacto directo com a RENAMO e com o pr�prio Dhlakama, isolado em Mo�ambique - concluiu-se sem nada resolver. A Comunidade Sant�Egidio procurou evitar que aqueles fios se perdessem completamente e criou um quadro de negocia��o novo que a muitos parecia imposs�vel naquele momento.

Quando, secretamente, � bom recorda-lo, as duas delega��es se encontram em Sant�Egidio em julho de 1990, dando assim in�cio � media��o verdadeira e pr�pria, essas falaram de �divina coincid�ncia�: Com efeito, seja o Governo, com uma miss�o autorizada pelo Presidente Chissano em Mar�o de 1990, seja a Renamo, em junho do mesmo ano, tinham pedido para realizar o primeiro encontro directo mesmo em Sant�Egidio. A It�lia indicou o seu representante na media��o, pelo contr�rio o Vaticano n�o estava envolvido como o negociado era s� da responsabilidade da Comunidade de Sant�Egidio. A facilita��o deve ser escolhida pelas partes a confiarem. Quando esta falta ou � fruto de c�lculos t�cticos ou de imposi��es pol�ticas, as negocia��es resultam de consequ�ncia muito mais lentas e a media��o � verdadeiramente fraca.

O texto do Acordo de Paz � um complexo, um conjunto de mecanismos e garant�as, fruto de discuss�es as vezes estenuantes, �passo a passo�, sobretudo os aspectos da discuss�o. Os negociadores quiseram deixar pouquissimas ambiguidades no texto, mesmo para evitar o risco de interpreta��es divergentes e garantir-se uma aplica��o do acordo ao abrigo de possiveis e perigosas discuss�es. O m�todo era claro, extremamente flex�vel ao mesmo tempo, escolhido mesmo pelo Governo e pela Renamo: encontros diretos; nenhum contacto entre eles fora destes; eventuais reuni�es informais s� na presen�a da facilita��o; nenhum contacto com a emprensa; identifica��o de uma agenda e solu��es dos diversos pontos um por vez. Os textos de trabalho n�o eram impostos ou fruto de hipot�ticas imposi��es dos facilitadores. A proposta sobre o tema objecto da discuss�o apresentada por uma parte, se contrap�e, depois de ter escutado com aten��o as motiva��es apresentadas, as reac��es. O texto proposto pela media��o era produzido tendo em conta as duas l�gicas contrapostas e depois, pouco a pouco, limado, modificado, nas v�rias discuss�es at� chegar � aceita��o do texto �nico das duas partes. Os v�rios mecanismos jur�dicos e as diversas garantias previstas deveriam compor as opostas preocupa��es dos negociadores.

A chave de todo o Acordo est�, na minha opini�o, no Pre�mbulo. Era necess�rio conjugar a preocupa��o leg�tima do Governo sobre a continuidade das institui��es com a aspira��o da RENAMO de criar novas regras comuns, nas quais confiar, sentidas como o fruto da sua luta. No Pre�mbulo o Governo comprometia-se a suspender de facto todas as leis que eventualmente estivessem em contradi��o com o que fosse concordado em Roma; por seu lado, a RENAMO aceitaria o quadro instituicional do pa�s logo que fosse assinado o Acordo de Paz. Para se chegar a isto foram necess�rios mais de doze meses. No entanto, foi mesmo o Pre�mbulo que marcou a transforma��o da RENAMO em partido pol�tico. O caso de Mo�ambique � um raro exemplo positivo: infelizmente, quantas vezes as "guerrilhas" permanecem como tais, perpetuando-se numa l�gica de guerra! A transforma��o em partido tem um custo. N�o foi f�cil identificar modalidades possiveis, transparentes e garantias, para financiar a democracia e a cria��o de um partido. O risco podia ser de intervenir demasiadamente cedo e favorecer, tamb�m se querer, a continua��o da guerra; pelo contr�rio atrasar demais podia fazer faltar o apoio indispens�vel para permitir a transforma��o necess�ria.

Tamb�m, � �til lembrar, entre os muitos aspectos conteudos no Acordo, a escolha feita pelas duas partes de n�o dar vida a Comiss�es da Verdade ou Tribunais de qualquer tipo para julgar os crimes cometidos ao longo do conflito, indica a maneira poss�vel, ao lado de outros, para resolver o problema da reconcilia��o, para concluir um per�odo e as contas, �s vezes infinitos, com o passado. Mem�ria, � claro; mas tamb�m futuro.

Perdeu-se tempo em Roma? Pensando a posterior aos longos meses de negocia��o poderemos dizer que sim. N�o nos podemos esquecer que a negocia��o partia do zero no sentido de que era o primeiro encontro f�sico entre as duas delega��es ap�s anos de conflito. Existiam, portanto, tempos fisiol�gicos de aceita��o rec�proca. A desconfian�a e as d�vidas eram profund�ssimas quer duma parte quer doutra. Entretanto, alguns diplomatas manifestavam cepticismo, de vez em quando a imprensa insistia na negocia��o que "se arrastava". Mas foi talvez a lentid�o que favoreceu uma aplica��o relativamente f�cil do Acordo apesar dos atrasos da ONU (quantas discuss�es sobre quem poderia garantir o respeito do cessar fogo na falta de um �rbitro no terreno que garantisse a paz! Porque � que n�o houve praticamente incidentes entre as partes durante o longo per�odo sem nenhum controlo no terreno, isto �, de Outubro de 1992 at� Abril de 1993 quando finalmente come�aram a chegar os capacetes azuis previstos?).

Hoje? Dez anos depois � tudo diferente. Recordar a assinatura n�o significa certamente pensar que a letra do Acordo � ainda v�lida como se se tratasse de uma letra que se pode sacar sempre. A letra concluiu-se. Talvez algumas das reformas previstas n�o tenham tido a aplica��o desejada. Mas isso faz parte da transforma��o gradual de todos os pa�ses e da dial�ctica pol�tica normal. O Parlamento, como disse Andrea Riccardi no discurso que pronunciou durante a sua visita em 2001, � o lugar "privilegiado de di�logo entre as diversas inst�ncias pol�ticas, o laborat�rio de democracia. A cultura do di�logo - disse - � decisiva para o futuro do pa�s. Com o di�logo as diversas identidades comp�em-se; sem o di�logo contrap�em-se rigidamente at� chegarem ao conflito". O que � importante � que o esp�rito do Acordo n�o tenha acabado. A pr�pria decis�o un�nime do Parlamento de, pela primei ra vez, tornar o 4 de Outubro feriado leva a crer que se considera importante conservar a reserva moral e de responsabilidade representada pelo esp�rito do acordo de Roma. � a verdadeira heran�a de todos os que conseguiram ver a paz. A paz tem que crescer. N�o pode ser apenas conservada! Deve transformar-se na defesa dos direitos das pessoas; no desenvolvimento; na luta na terr�vel guerra contra a SIDA; na estabilidade da vida e das institui��es democr�ticas. Paz tem que se tornar solidariedade. Neste sentido o trabalho das Comunidades de Sant�Egidio mo�ambicanas � um motivo de grande esperan�a. S�o milhares de mo�ambicanos convencidos que ningu�m � t�o fraco que n�o possa amar, ningu�m � t�o fraco que n�o possa ajudar um pobre e um fraco; desejam construir a paz introduzindo o amor na vida das pessoas que vivem em nosso redor.

H� muitas coisas que n�o correm bem. Claro! E � um dever indica-las. � a dif�cil mas normal procura do bem comum. Por�m n�o temos que permitir que o ambiente se polue pela desconfian�a e pela contraposi��o.

Sabemos bem como estas coisas podem conduzir a consequ�ncias desastrosas.

O m�todo do di�logo e da reconcilia��o tem que se refor�ar a todos os n�veis: n�o afirmar a sua convic��o sem ter em conta o outro, n�o impo-la, procuramos sempre, tamb�m se n�o servir, mas como m�todo, o que une.

Est�o previstos acontecimentos importantes nos pr�ximos anos: as elei��es aut�rquicas (2003), presidenciais e parlamentares (2004). O esp�rito de Roma significa procurar o que une e p�r de lado o que divide. Pensamos que este � o esp�rito necess�rio para que Mo�ambique possa continuar a representar um exemplo para todo o amado continente africano e para o mundo inteiro, o exemplo de que a paz � poss�vel e de que o di�logo � a �nica via para a paz. Sempre.